Nos dias de hoje é comum evitar falar de fascismo nos espaços críticos que circulam dentro da geografia de determinados setores da extrema esquerda. Abaixo, por outro lado, poderemos perceber que uma leitura atenciosa permite a demonstração objetiva da utilização do termo quando aplicado ao Brasil. Estaremos apoiados em discussões históricas que não são lugares comuns.

Nesse sentido, é uma abordagem adequada porque não segue modelos de leitura aprisionadas por consensos táticos apriori demarcados por setores em disputa dentro das esquerdas. Sem dúvida existem as falsas querelas em torno da utilização ou dá não utilização do termo. Contudo, tomando conhecimento de que estão equivocadas, devemos ter a consciência clara de que o impedimento de uma abordagem adequada sobre o problema não contribui minimamente com o que se passa.

Evitar uma abordagem concreta e bem amparada apenas por receio de lugares comuns é tão ruim quanto cair nessas mesmas discussões. E mais, o que há muito por aí são cúpulas tentando domesticar essa querela e criando muitos impeditivos para tratar do tema. Os fatos históricos e as pesquisas a respeito da correta especificação do tema passa ao largo das querelas e daqueles que se intitulam como donos do tema.

Esse tema é necessário, e evitar tratar dele é uma decisão equivocada. Ocorre por receio de se verem confundidos com as alas reformistas que codificaram o bolsonarismo como o único fascismo em jogo no Brasil, objetivando isolar o “inimigo” com estritos objetivos eleitorais. É estritamente por isso e por outras especificações menores que uma certa extrema esquerda tupiniquim embarga e cerceia o debate a partir de rigor analítico. Em realidade, segue apenas uma tática que virou consenso que mira um oportunismo desinteressado de pesquisas históricas sob o critério da linha de fuga relativamente às frentes amplas e ao lulismo 3.0. Assim, trata-se de jogo de interesses de grupos que acham que quem aborda o tema do fascismo está compactuando com o reformismo.

Nada mais nada menos do que uma forma de estabelecer uma censura tácita consciente ou inconscientemente, e que, no limite, impede a denúncia da estreita relação genética do fascismo a partir do colonialismo em solo brasileiro. Tal cerceio permite inferir que: o que se deve falar ou não apenas por conveniências táticas é uma forma puramente arbitrária de dizer mais uma vez assim: “se não disser o que eu quero, cala-te”. Algo muito comum, ressalte-se, em todas as esferas da esquerda brasileira. O reacionarismo e o cerceamento grassam em sua generalidade no Brasil. Aqui está, portanto, um motivo importante para abordarmos o tema, ou seja, enfrentar esse cerceamento.

Fora alguns casos específicos (Safatle, Jones Manoel, João Carvalho), no campo marxista brasileiro atual é escasso o debate sério a respeito do surgimento do fascismo em sua relação genética com o colonialismo. Por isso, a discussão em torno de se estamos vivendo ou não uma situação fascista tem sido inócua no campo da esquerda brasileira, sequestrada muito comumente por pautas politicistas que giram em torno das eleições, ou mesmo de sua crítica. Precisamos sair desse círculo vicioso.

E mais, aqui não se trata, sem dúvida, de apenas afirmar que o fascismo é uma espécie de contrarrevolução preventiva do capital mediante contextos de refreio da emergência de esquerdas revolucionárias europeias. Se trata também de dizer que é “algo caracterizado pela guerra, pelo expansionismo colonial e pelo aniquilamento”, algo que assume nos dias de hoje uma configuração muito precisa no Brasil. O fascismo mira uma fase entrópica do capital para acelerar suicidariamente o “desenvolvimento” autofágico de si às custas do abismo dos outros, como dirá Losurdo.

Também se trata de um estado capitalista e colonial de exceção que mira um passado ficcionado por “povo escolhido e sua burguesia”, tanto quanto hipostasiado com horizonte de aplicação violenta de um futuro deles dependente, como diria João Bernardo.

Ademais, como enfatiza Poulantzas, esse tema é reforçado por meio de “raízes nos lugares em que se depara com um movimento operário e popular débil e com organizações sindicais e partidárias com dificuldades de exercer a representação de amplas bases de trabalhadores“.

Sem dúvida, os três aspectos acima expressos são pontos nevrálgicos que tomamos aqui como premissas. É então preciso levar em consideração as operações ativas do colonialismo, sem escamotear a sua perpetuação, a do neocolonialismo e outras formas de expressão como parte dos mecanismos endógenos ao desenvolvimento do capital, seus mitos, suas crises, ataques ao mundo do trabalho e desdobramentos na atualidade.

Escamoteando esse problema se torna ponto comum a afirmação apressada de que o fascismo é coisa do passado, tanto quanto o integralismo, no caso brasileiro. Assim, é reiterada uma forma de interpretação que toma o fascismo como algo conjuntural aplicado estritamente a uma fase histórica pretérita irrepetível (Poulantzas, por exemplo, é contra este posicionamento). Também discordamos dessa interpretação, ao lado de Brecht, Poulantzas e tantos outros. Vejamos abaixo porque.

Uma pequena digressão cabe aqui para reforçar a justificativa da tese não muito nova. Sem dúvida, não é possível comparar a natureza do colonialismo no Brasil e nos EUA. São baseados em processos completamente diferentes. De todo modo, vale aqui lembrar que não é um mero detalhe o fato de os dez primeiros presidentes dos EUA terem sido escravocratas (Eram donos de escravos). Também não custa lembrar que, seguindo a gênese dos EUA escravagista, muitos nazistas tiveram justamente como base de fundamentação prática as manifestações sinistras da KKK e, principalmente, dos manifestos escritos por Lothrop Stoddard. Até Henry Ford entra como parte do problema, pois era um empedernido e autodeclarado antissemita, como está evidenciado em sua obra Judeu Internacional.

Da mesma forma, cabe ressaltar que o colonialismo é parte do processo de expansão capitalista europeu. Não é possível separar expansão do capitalismo do modelo de escravagismo nas colônias, principalmente aquelas de alta extração de matérias-primas destinadas ao fortalecimento do processo de modernização na Inglaterra e outros países, por exemplo. Para que ela pudesse se expandir industrialmente eram necessárias, ao menos inicialmente, colônias para pautar meios de trabalho de exceção (mesmo que já o fizesse no bojo de seu próprio território, como magistralmente expressa Engels em “Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra“). Não por acaso Portugal e Espanha foram financiados pelas aristocracias de potências (como as da Itália) para especularem com escravos em territórios a serem descobertos. O mundo do trabalho formal no norte é complementado por trabalhos de exceção no sul global (sem dúvida os países do norte, apesar disso, também tiveram processos de exclusão social e trabalho informal escravagista).

Sem o expresso o capitalismo não se sustentaria com suas operações modernizantes no Norte do planeta. E é com base nesse alicerce que o capitalismo se funda e, a partir dele, o fascismo se instaura posteriormente em solo europeu. Nessa toada, vale também a remissão de que a Alemanha tinha como objetivo não apenas destruir judeus e comunistas, mas escravizar eslavos e subjugar os povos do leste europeu (o leste deveria ser o quintal dos nazistas). Eram vistos como gente impura (estavam muito próximos da Ásia – deixemos de fora aqui o caso do fascismo japonês em solo asiático. Mas aqui está uma excelente referência a respeito).

Ora, o procedimento nazista era semelhante ao que ocorria nas colônias, com os negros, indígenas, aborígenes etc (não há, portanto, racismo apenas contra negros, mas contra etnias diversas a partir dos territórios que ocupam). Assim, o fascismo em suas formas mais brutais é um modo de colonialismo aplicado em nível interno.

Tratemos do contexto brasileiro. O objetivo aqui é ressaltar que esse mesmo problema persiste no Brasil, uma vez que ainda é um país colonizado e, no mínimo, neocolonizado (conferir como Nkrumah compreende o que seja neocolonialismo). Ou seja, persiste atravessando a estrutura econômico-política do país. Tanto os partidos de esquerda como de direita são apenas administradores desse processo colonial facistoide.

Em síntese, em função de seu atual poder político econômico o Brasil comporta a contradição de ser tanto uma neocolônia ajoelhada aos interesses externos quanto fascista em sua dinâmica social e geográfica interna. O seja, é dominado (política, econômica e culturalmente) de fora para dentro ao passo em que opera simultaneamente em seu próprio território de modo radicalmente fascista, ou seja, direciona as dinâmicas do colonialismo ao nível interno, engendrando a criação de apartheids e mortes em massa de dissidentes como meio de controle social. Algo que se segue de modo mais ou menos silencioso, com corpos sendo ocultados em diferentes escalas e intensidades.

Nesse sentido, o bolsonarismo e seus absurdos são o lado mais radical do fascismo no Brasil. Mas nem de longe o fascismo que geneticamente está originado no neocolonialismo é redutível ao bolsonarismo. E não há nada de absurdo sobre o que aqui está sendo dito. Desenvolvamos com mais calma a tese.

Em realidade, o Brasil é um modelo de referência colonial anterior ao fascismo, e que serve de justo parâmetro para instaurá-lo posteriormente. Como já foi dito, o fascismo é especificamente o colonialismo aplicado ao solo europeu, tendo antes se iniciado nas colônias que girariam produtivamente em torno da Europa.

Curiosamente, o pai do fascismo, ou seja, o colonialismo, é a base maior das sociedades de instauração absoluta de mercado, a qual inicialmente coloca no corpo dos escravizados a pecha matemática das mercadorias transoceânicas que forjariam paulatinamente o sistema industrial moderno. As máquinas são também lubrificadas pelo sangue que mancha o algodão e os escravos nas colônias, em convergência com o abate de trabalhadores nas fábricas¹.

O Brasil é um país cuja orla é um mar de sangue. Sendo esse o caso, é protagonista no processo de confecção posterior dos Salazares, Francos, Hitlers e Mussolinis. Há fascismo (avant la lettre) no Brasil desde que ele foi iniciado como projeto econômico-político territorial. É um caso de sucesso, um modelo de exportação que migra posteriormente para o solo dos interventores. Como retorno do recalcado brota em solo europeu nos arredores das fábricas nacionais, relativamente a países mais ou menos atrasados industrialmente.

Pasmem, nos dias de hoje essa emenda histórica é censurada no Brasil pelas próprias esquerdas, porque, através de suas frentes amplas, são alinhadas à estrutura genética do próprio fascismo neste território. Tanto quanto Plínio Salgado e Getúlio foram um dia, a esquerda brasileira em nada deve ao mussolinismo ou ao integralismo regressivo, sendo agora um polo complementar ao bolsonarismo quando reestruturada no sentido da ultrassubmissão estadunidense (Sem dúvida algumas matizações seriam necessárias. Por exemplo, as disputas entre Getúlio e Plínio Salgado. Tiveram embates e existiam grandes diferenças entre um e outro. Prestes, por exemplo, apoiaria o primeiro para evitar um empoderamento do segundo na presidência – tratava-se de um adversário bem mais perigoso).

Há fascismo no Brasil por todos os seus poros. Mas o inventário de ideias que afirmam criticamente sua existência circula de forma equivocada, tanto quanto as vertentes apressadas que dizem assertivamente negá-lo nas paragens de cá. É uma questão colonial genética-estruturante, e não conjuntural. Remete aos tempos seculares.

Não é bem como se a “cadela do fascismo estivesse sempre no cio”, como diria Brecht. Trata-se precisamente do fato que as colônias são as genitoras que fazem o trabalho de parto do fascismo já em suas emergências escravagistas, subsumidas às dinâmicas dos centros de poder do capital internacional.

Ao fim das contas, cabe então dizer que quem não enfrenta tal problema genético-histórico de frente e o escamoteia está fortemente propenso a se alinhar àqueles que dizem cinicamente enfrentar. Lembrando aqui que, em função da estrutura colonial reprodutível nos tempos atuais, o que temos no presente é uma tensa luta entre correntes fascistas moderadas e radicais: briga de gestores do capitalismo neocolonial submetido ao imperialismo econômico político. Não se trata, portanto, de uma disputa entre direita e esquerda, a não ser que se deva levar em consideração um fascismo mais a direita e outro mais a esquerda.

As pseudopolarizações são em realidade outra maneira de dizer que as alas que deveriam estar interessadas no enfrentamento do problema não querem prestar contas com a história da sombra que persegue e condiciona os atos e as decisões da atual economia política brasileira desde a fundação do país.

Os setores em disputa nos dias de hoje são polos retroalimentáveis, tal como os republicanos e democratas no bojo dos EUA, embora o Brasil seja cão de guarda do primeiro. Há por dentro das instituições uma relação de espelhamento entre os lados em disputa que se espionam. Tal dinâmica perigosa de espelhamento e de atravessamento de um no outro pode trazer consequências inimagináveis. No tocante ao que nos diferenciaria dos nossos verdadeiros inimigos poderíamos em realidade estar a concluir o projeto daqueles contra os quais dizemos ter um ódio incondicional.

Em um país que enterrou sua revolução o fascismo impera sob a sombra histórica do colonialismo escravagista, com a morte em massa industrialmente produzida. Não é porque é aparentemente silenciosa que não grita diretamente dos presídios, das periferias, das reservas indígenas, dos campos de trabalhos neoescravagistas e nas madrugadas urbanas. Encomendas do Estado ou dos grupos privados, é a burguesia que aluga seus matadores (policiais, militares etc.) na engrenagem de novos apartheids, de modo a operar eficazmente com procedimentos e mecanismos de tortura advindos da ditadura. Não estão desativados.

Lembramos que isso ocorre enquanto uma certa elite concursada e burocratizada de (extrema?) esquerda dorme confortavelmente em suas casas, sob a proteção de sistemas de segurança que, ironicamente, são instalados pelos mesmos que aniquilam os que ela diz cinicamente representar. Talvez seja por isso que ela evita falar de fascismo brasileiro na contemporaneidade. O sono confortável e a omissão evidente em relação ao tema são meios de lançar mão da pergunta a respeito do verdadeiro caráter daqueles que se dizem chamar de esquerda.

Notas:

  1. Como já diria Losurdo “Mais forte que nunca ressoa aqui o ódio às revolução nacionais dos povos coloniais. O caráter puramente bárbaro do nazismo reside, entre outros aspectos, na tentativa de construir um império colonial no coração da Europa, pretendendo, assim, negar o direito à autodeterminação e a uma existência nacional autônoma também àqueles povos que já haviam sido francamente reconhecidos pela comunidade internacional em seu todo”.