Síria: uma vitória tática para os EUA e Israel, mas não haverá um efeito colateral?
Unir os oprimidos e superar os limites do Eixo de Resistência
Declaração conjunta da organização internacional Comitê de Ligação pela Quarta Internacional e do agrupamento ClassConscious (EUA e Austrália)
A queda do governo sírio é o evento geopolítico mais importante desde o ataque da resistência palestina a Israel em 7 de outubro de 2023.
No imediato, é uma vitória tática do imperialismo, e sobretudo de Israel, por enfraquecer as rotas de suprimentos de armas e recursos financeiros destinados às guerrilhas no Líbano e na Palestina e permitir a destruição de uma força política que, depois do Irã, tinha o melhor arsenal para enfrentar a entidade sionista.
Israel efetivamente removeu um adversário potencial inteiro na guerra em curso contra a resistência. O Irã já demonstrou sua capacidade de atingir Israel de forma poderosa e diretamente, mas perdeu temporariamente a capacidade de ameaçar Israel em suas fronteiras por meio de seus aliados. Embora Assad não tenha aberto ativamente a frente de guerra, na disputa pelas Colinas de Golã nos últimos 14 meses, a destruição completa do Exército, da Marinha e da Força Aérea da Síria remove esse potencial adversário do sionismo para um futuro previsível.
Isso fortaleceu muito o governo de Netanyahu e os fanáticos do “Grande Israel” em seu governo, que atualmente estarão embriagados de poder e suas ambições supremacistas arrogantes também se tornarão mais encorajadas com a chegada ao governo de Trump. Isso pode apressar os planos imperialistas de longo prazo para a guerra com o Irã para “terminar” seus objetivos de “remodelar” a Ásia Ocidental.
The Telegraph (13/12/20024): Trump está 'considerando proposta para atacar o programa nuclear do Irã' - Presidente eleito pondera ataque mais sério após queda de Assad na Síria e expressa preocupação a Netanyahu sobre avanços iranianos
No entanto, um exame dialético dessa vitória imediata do imperialismo revela que ela pode ser mais frágil e temporária do que parece à primeira vista. Os interesses contrarrestantes aos do sistema EUA/Israel de potências regionais como a Turquia, as forças do caos desencadeadas e a natureza não confiável das forças jihadistas HTS podem semear as sementes de uma reação negativa contra o imperialismo a longo prazo ou até médio prazo. Diante de contradições crescentes, cada vitória do imperialismo no contexto atual cria potencialmente mais contradições e problemas mais a frente.
De que lado jogam o Erdogan e o HTS?
Mas, essa vitória parece ter fôlego curto. Um dos jogadores mais beneficiados com a queda de Assad na região é a Turquia. A Turquia, governada por Recep Erdogan, faz parte da OTAN, mas não goza da confiança da federação imperialista que organizou um golpe militar para derrubá-lo em 2016. Tendo sobrevivido a tentativa de golpe, Erdogan busca cavar um espaço autônomo desde o início dessa guerra fria e mais ainda agora nos primeiros conflitos da Terceira Guerra Mundial, para recuperar a influência que teve até a Primeira Guerra Mundial, quando o país comandava o Império Otomano.
Erdogan e Assad
A Turquia sabe que só pode desempenhar esse papel autônomo, conquistando apoio de massas na região opondo-se aos demais jogadores, sobretudo ao odiado Estado de Israel. Não por acaso, no mesmo dia 7 de dezembro, quando Damasco caia, Irã, Rússia e Turquia realizavam um Fórum trilateral em Doha, quando:
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse no sábado que ele e os ministros das Relações Exteriores da Turquia e do Irã concordaram em uma reunião em Doha que deveria haver um fim imediato às "hostilidades" na Síria, relata a Reuters. Lavrov disse que Moscou queria ver um diálogo entre o governo sírio e o que ele chamou de “oposição legítima” na Síria. (MiddleEastMonitor: Russia's Lavrov says Moscow, Tehran and Ankara want immediate end to fighting in Syria).
A oposição legítima a que se refere o ministro russo é a influenciada pela Turquia que já depois da queda de Assad entraram em choque com as Forças Democráticas Sírias, ligados aos curdos e apoiadas pelos EUA.
Seria um erro acreditar que o processo esteja controlado pelos EUA e Israel. É a decadência do sistema imperialista que alimenta aspirações protagonistas nas burguesias e governos da Turquia e da Arábia Saudita, que se encontram com o status de aspirantes dos BRICS plus.
O grupo mercenário que tomou Damasco, por exemplo, o sunita jihadista e salafita Hayat Tahrir Al Sham (HTS ou Organização para a Libertação do Levante), dirigido pelo saudita Abu Mohammed al-Jolani, que voltou a usar o nome de Ahmed al-Sharaa, está em disputa. A HTS continua a ser designada pela ONU, EUA, Reino Unido e outros países como uma organização terrorista, e os EUA mantiveram uma recompensa de US$ 10 milhões por informações sobre o paradeiro de Jolani.
O governo britânico tensiona o HTS, mas também revela a hesitação do imperialismo:
O primeiro-ministro Sir Keir Starmer disse que ainda não foi tomada nenhuma decisão sobre se o governo do Reino Unido poderia remover Hayat Tahrir al-Sham (HTS) de uma lista de grupos terroristas proibidos depois que os rebeldes lideraram a derrubada de Bashar al-Assad na Síria.
"Todos nós já vimos em outras partes da história onde achamos que houve um ponto de virada, mas que não necessariamente se tornou o futuro melhor que esperávamos", acrescentou Sir Keir. (BBC: Too early to remove Syrian rebels from terror list - Starmer)
Por isso, Irã e o próprio Hamas nutrem expectativas de que o processo em seu conjunto possa favorecer ao Eixo da Resistência a médio prazo.
Pela mesma expectativa, mesmo depois da rendição sem combate por parte do Exército sírio, o IDF sionista já bombardeou quase 500 vezes contra posições militares estratégicas na Síria sob a justificativa de "impedir que armas caiam nas mãos de elementos terroristas". Comparado ao Hezbollah, por exemplo, o aparato militar do Exército sírio é muito superior. Por isso, Israel que não tem qualquer segurança sobre o futuro da Síria vem bombardeando caças, helicópteros, lançadores de mísseis superfície-ar e locais de fabricação de armas na Síria.
War_Room_ME (10/12/2024): Os ataques aéreos das #IDF na #Síria destruíram todos os esquadrões MiG-29 da antiga Força Aérea Síria, vários radares e depósitos de armas. As defesas aéreas e navios de guerra no Porto de Latakia também foram atingidos. #Israel visa prevenir que esses ativos caiam nas mãos erradas. #Assad #HTS
Pela agenda dos EUA e de Israel, a queda do regime sírio permitiria suprimir a presença da Rússia, onde ela mantém duas bases navais (Tartus e Latakia), cortar as vias de armamentos e finanças para o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, na Palestina, conter o avanço da nova rota da seda da China, isolar o Irã, abortar o crescimento dos BRICS na região, ao mesmo tempo que favoreceria ao plano do “novo oriente médio” de Israel e das rotas de petróleo e comercio controladas pelo sistema imperialista.
Essa não é a mesma agenda da Turquia, que se aproveitou da desagregação da síria para projetar seu poder autônomo em meio a crise do sistema imperialista e a nova guerra fria para reestabelecer a influência turca na região, perdida desde a primeira guerra mundial. O segundo objetivo de Ancara é sufocar as comunidades curdas, que lhe fazem uma forte oposição dentro da Turquia e que tem no norte e nordeste da Síria um terreno fértil para fundar o curdistão. Por isso, mercenários pró-Turquia estão expulsando os curdos da cidade síria de Deir Ezzor. Ao mesmo tempo, as bases militares russas, não tem sido atacadas até agora pelo que Lavrov chamou de “oposição legítima” síria.
O Corpo da Guarda Revolucionária do Irã (IRGC), temida por Israel como “a maior organização terrorista do mundo” lançou um apelo ao futuro governo sírio:
«Existem alguns pontos básicos fundamentais nos quais qualquer possível cooperação iraniana com o novo governo sírio deve basear-se:
– Acordar na proibição da normalização entre a Síria e o inimigo israelita.
– Rejeitar a incursão israelita em território sírio e confrontá-la por todos os meios, incluindo meios militares.
– Proteger as minorias religiosas da Síria, não atacar os países vizinhos, proibir atividades terroristas e cancelar o apoio a tais atividades.
O Irão e o Eixo da Resistência apoiarão qualquer governo sírio não-sectário que rejeite o regime sionista, esteja ao lado do povo palestiniano e coloque a questão da Palestina e do seu povo entre as suas prioridades.'
Blowback é uma expressão do lexo da inteligência internacional desde o início da primeira guerra fria (1949-1991) que se refere aos efeitos colaterais que se voltam contra operações secretas do imperialismo, como, por exemplo a revolução iraniana (1979) resultante de um processo de amadurecimento da luta pela libertação nacional iraniana que se voltou contra o imperialismo após o golpe de estado promovido pela CIA no Irã, em 1953.
O ataque de guerrilheiros fundamentalistas, utilizados pelos EUA contra a URSS no Afeganistão na década de 1980, contra o WTC em 2001 e o surgimento da Al Qaeda seria outro exemplo de blowback. A atual operação pela derrubada do regime Assad, apesar de rápida e bem-sucedida, também parece gestar rapidamente seu blowback, pelo fato de que logo imediatamente após a queda de Damasco, as mesmas forças que se uniram no levante, já começaram a disputa pelo botim entre si, começam a se engalfinhar.
Osama Bin Laden elogiado pela mídia ocidental por sua jihad antissoviéticam, na década de 1980
As contradições internas do colapso do governo favoreceram uma ampla frente única de interesses antagônicos e essa unidade anti-Assad deu um salto de qualidade quando concentrou uma grande tensão contra a qual não houve resistência. Desaparecido o antagonista Assad, criam-se novas contradições dentro da frente ultra heterogênea, disputando o botim.
IDF, HTS, Exército livre da Síria, curdos, já começaram a entrar em choque entre si. Os primeiros vitoriosos reprimidos tem sido os curdos. Mercenários pró-Turquia estão expulsando os curdos de Deir Ezzor, reprimidos pela Turquia, através do "Exército livre" e pelo controle do petróleo. Esse processo vai alimentar direta ou contraditoriamente o ressurgimento do eixo da resistência na Síria.
Tanto o governo da Turquia quanto o da Arábia Saudita, assim como as milícias que eles apoiam na Síria não devem merecer a menor confiança por parte dos oprimidos. Mas tão pouco são agentes confiáveis para o próprio imperialismo. A maior prova disso é a pretensão de Israel por aniquilar todo aparato repressivo que seria herdado do governo Assad para um futuro governo das milícias apoiadas por Turquia e Arábia Saudita. Essas contradições podem e devem ser aproveitadas pelo eixo da resistência na política de debilitamento do controle imperialista sobre a região. Ao mesmo tempo, são razoáveis os pontos básicos apresentados pela IRGC para disputar politicamente o novo governo sírio.
Como um país que resistiu bravamente por 50 anos às investidas do imperialismo, caiu como um castelo de cartas em 10 dias?
Nem os EUA, nem Israel, nem a Turquia ou sequer qualquer milícia guerrilheira derrotou o Exército sírio, quem o fez foi a guerra econômica do imperialismo que estrangulou o Estado árabe da Síria e sua espinha dorsal, o Exército.
Não houve defesa. Damasco se rendeu. Assad fugiu para a Rússia. Centenas de militares e dirigentes do antigo governo que não conseguiram fugir para o Iraque vem sendo genocidados. Agora, o Estado Árabe da Síria está sendo dilacerado vivo.
A Síria é um país do Ocidente Asiático cujo principal recurso natural é sua própria localização geoestratégica. Em comparação aos vizinhos, a Síria quase não tem petróleo. A localização do país é essencial para todos os movimentos geopolíticos entre os três continentes do velho mundo, sobretudo, entre a Europa e a Península Arábica, fazendo fronteira tanto com a Turquia como com o Iraque. A Síria era a principal rota de abastecimento de suprimentos do Eixo da Resistência que liga o Irã ao Líbano.
A Síria é um país oprimido e rebelde há mais de meio século, quando Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad, do partido Baath, representante do nacionalismo árabe e aliado da URSS, se opôs a integração do país ao sistema imperialista liderado pelos EUA, como fizeram Arábia Saudita, Egito e Jordânia.
A Síria e a União Soviética estabeleceram um acordo de proteção mútua em 1971 que resultou na instalação de uma base naval soviética em Tartus durante a Guerra Fria, com o objetivo de apoiar o 5º Esquadrão Operacional da Marinha Soviética no Mediterrâneo, que os soviéticos viam como um contrapeso à Sexta Frota dos EUA sediada na Itália.
Desde então, o imperialismo vinha tentando subjugar o país com sansões. A Síria se enfraqueceu na década de 1990 com o fim da URSS e a ofensiva imperialista foi, aumentada a partir da “guerra ao terror” (2001) dos EUA, com a invasão do Afeganistão e Iraque. Essa pressão obrigou ao regime político se tornar cada vez mais repressivo contra a insurgência patrocinada pelos EUA, Israel e Turquia, que culmina na constituição de uma frente de oposição, apoiada pelo ocidente que articula uma frente de oposição, o Conselho Nacional Sírio e o Exército Livre da Síria (também chamado de Exército Nacional sírio), que vai se alimentar de desafetos e desertores do próprio regime Assad.
O Pentágono estabeleceu uma base militar estratégica desde 2016 no país, a base de Al Tanf, que hoje pode contar com mil soldados. Esse movimento insurgente vai ser potenciado por bombardeios e intervenções militares camufladas de “guerra civil” que dura de 2011 a 2018.
Diferente de outros países oprimidos que sofrem da guerra econômica do imperialismo, a Síria sofreu, cumulativamente, sanções, intervenção militar e mais sanções, como a Lei Cesar, imposta em 2020 pelos EUA. Diferente de outros países sancionados, a Síria que era o terceiro país mais sancionado do mundo até 2022, não possui reservas energéticas como a Venezuela, Rússia ou Irã que pudessem remediar o caro preço econômico, social e humano do bloqueio imposto pelo sistema imperialista. A Síria conta com uma reserva estimada de aproximadamente 2,4 bilhões de barris de petróleo. A Arábia Saudita tem cerca de 297 bilhões, o Irã 157 bilhões e o Iraque 145 bilhões. E mesmo com pequenas reservas energéticas, essas já eram controladas pelo inimigo, diretamente por tropas de ocupação do exército dos EUA ou organizações mercenárias que se associavam aos EUA, como curdos, o Estado Islâmico, que em 2014 havia conseguido dominar a maioria dos campos no leste da Síria, incluindo o maior, Al Omar, também em Deir ez Zor. As vendas de petróleo se tornaram uma das maiores fontes de renda para o Estado Islâmico, gerando cerca de US$ 40 milhões por mês em 2015, segundo o Departamento de Defesa dos EUA. Em 2017, as Forças Democráticas da Síria, lideradas pelos curdos, também financiados e armados pelos EUA, assumiram o controle dos principais campos de petróleo no nordeste da Síria e ao longo do rio Eufrates. Em 2019, Donald Trump, então em seu primeiro mandato presidencial, disse que os Estados Unidos esperam obter receitas milionárias provenientes do petróleo sírio, pelo menos U$ 45 milhões por mês. (BBC: Assad acusa EUA de roubarem petróleo da Síria; afinal, quem se beneficia da produção do país?)
O PIB da Síria caiu de US 68 bilhões de dólares em 2011 para US 8 bilhões em 2020 (Banco Mundial). 90% da população síria está abaixo da linha da pobreza (ONU). O salário médio dos soldados sírios era de US$ 7 dólares por mês e dos comandantes não passava de U$ 40 dólares por mês. E esses eram os melhores salários médios do país. Essa miséria foi o resultado de uma guerra econômica devastadora de sanções que até então e impôs a Lei Cesar em 2020, contra o país e empresas terceirizadas que negociassem com a Síria. Até março de 2022, a Síria era o terceiro país mais sancionado do mundo (Statista). Tudo isso engendrou a falência do estado árabe sírio:
Segundo o Vice-comandante-chefe da sede do IRGC 'Khatam al-Anbiyaa': 'Bashar al-Assad não solicitou ajuda iraniana - na verdade, ele nos impediu ativamente de ir e ajudar'
– Bashar al-Assad disse a um dos nossos responsáveis ??(iranianos) numa reunião: 'Os meus soldados tornaram-se verdadeiramente contrabandistas ou ladrões, apenas defendem aqueles que lhes oferecem subornos e privilégios. Eles não puderam me defender, e quando eu quis proteger pelo menos Damasco, percebi que eles também não eram capazes de proteger Damasco.'
– Bashar al-Assad não permitiu que nós (o IRGC) fôssemos ajudar o Exército Árabe Sírio, embora nos tenha pedido ajuda no passado, mas desta vez ele não só não pediu, como estava preocupado com a nossa chegada, e disse que 'se você vier, Israel provavelmente nos atacará'. (Middle East Spectator).
A desmoralização e o retrocesso político do próprio governo Assad pavimentaram a marcha triunfal e sem obstáculos da matilha de forças hostis para se apropriar do Estado Sírio.
Líder Supremo do Irã, Aiatolá Khamenei
A vitória da Síria contra o imperialismo em 2018 foi uma vitória da classe trabalhadora mundial
A ofensiva militar internacional e nacional imperialistas foi contida pelo apoio militar do Irã e da Rússia. Essa contenção da política expansionista do imperialismo na Síria, em 2018, foi um marco da atual guerra fria, revelando o declínio da hegemonia militar do sistema imperialista sobre o globo. Foi um processo progressivo para os povos oprimidos e por isso deveria ter sido apoiado por todos os genuínos comunistas, antiimperialistas. A vitória da Síria contra a “primavera árabe” e a “guerra civil” manipulada pelo imperialismo entre 2011 e 2018 foi uma vitória da classe trabalhadora mundial.
Entre 2011 e 2024 Rússia e Irã blindaram o governo Assad. Em 2015, a Rússia fez um novo acordo com a Síria e construiu a base aérea de Khmeimim, em Latakia, para servir como "o centro estratégico da intervenção militar russa em nome do governo sírio”. Assessores militares russos, bem como os do Irã, o Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana e o Hezbollah foram essenciais para derrotar o plano das forças da OTAN por derrubar o “ditador Assad”, como haviam feito com Saddam Hussein e Kadafi.
Mas, a partir de 2022, os dois países aliados de Assad foram profundamente envolvidos nas duas arenas onde a guerra fria entre a OTAN e bloco eurásico já se tornou quente e onde já eclodiu os primeiros focos de uma terceira guerra mundial.
Nesse processo, o próprio governo Assad, fragilizado, passou a buscar uma política de reconciliação com EUA, Israel e Turquia, tomando uma certa distância de Rússia e Irã, diminuindo a cooperação com esses dois últimos.
É agora amplamente conhecido que o Irão, o Hezbollah e outras facções xiitas pediram permissão a Assad para abrir uma frente nas Colinas de Golã depois de 7 de Outubro para apoiar a resistência em Gaza e no Líbano. No entanto, Assad recusou, alegadamente dizendo que não queria arrastar a Síria para um possível confronto aberto com Israel e que não queria correr o risco de comprometer o seu progresso de normalização com os Estados do Golfo. (Middle East Spectator).
Nos últimos dois anos, Assad passou a acreditar em poder pacificar suas relações com o Ocidente, assumir uma posição cada vez mais neutral enquanto a terceira guerra escalava. Isso deixou o país mais vulnerável a ação de todas as forças anti-Assad que operavam em território sírio e conduziu a desmoralização de parte das próprias forças armadas. Vários comandantes foram sendo subornados e cooptados pelo ocidente. As instituições estatais foram se dissolvendo enquanto a oposição pró-imperialista, derrotada em 2018, foi recuperando forças.
Mesmo assim, tanto Rússia quanto o Irã se ofereceram para apoiar uma contraofensiva síria. Assad esteve na Rússia no dia 29 de novembro para conversar pessoalmente com Putin. Mas Assad e seu governo pareceu não querer mais protagonizar a defesa do Estado contra a matilha de opositores.
De quem é a culpa pela queda de Damasco?
Há várias dúvidas sobre quem seria o culpado pela queda da Síria: Da Rússia, Irã ou China, porque não socorreram econômica e militarmente ao governo Assad, ou de Assad, porque não foi mais democrático com o povo ou não aceitou ajuda de uma intervenção estrangeira para salvá-lo? Acreditamos que a resposta é nenhuma das alternativas anteriores. Procurar culpado é um sintoma de crise no lado derrotado.
Muitos questionam se a rica China não poderia ter evitado o colapso econômico da Síria e impedido que a situação chegasse a esse ponto.
Em 2022, a Síria aderiu ao projeto chinês Cinturão e Roda da Seda. Em setembro de 2023, Assad fez sua primeira visita oficial à China. Nesse momento, os dois países anunciaram uma política de cooperação estratégica.
Xi Jimping ofereceu ajuda econômica da China para recuperar a economia da Síria. “A China está disposta a fortalecer a cooperação com a Síria por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota... para fazer contribuições positivas para a paz e o desenvolvimento regional e mundial", disse Xi (Xi Jinping oferece ajuda a Bashar al-Assad para reconstruir Síria e recuperar status regional - https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/xi-jinping-oferece-ajuda-a-bashar-al-assad-para-reconstruir-siria-e-recuperar-status-regional/).
Em 2024, a China doou o correspondente a US$ 10 milhões de dólares em equipamentos de comunicação para a Síria, também realizado ajuda médica e assistencial a Damasco. Todavia, o estreitamento dessas relações parece não foi o suficiente para salvar a economia e o Estado sírio da falência múltipla e do cerco que resultou na sua destruição.
Agora a China tende a perder muito porque com o fim do estado da Síria tal como o conhecemos, os EUA se aproximam da realização de seu objetivo estratégico na região, dando fôlego e retardando sua decadência ao conter sua perda de controle no Oriente Médio, núcleo das disputas pelo petróleo, a principal matriz energética do planeta.
Há meses o Irã vinha oferecendo para reforçar as forças de defesa sírias. Segundo o jornalista Pepe Escobar, o Irã dispôs: temos duas brigadas, se vocês derem o ok, vai demorar duas semanas, para eles se posicionarem em território sírio, mas estão à disposição.
Uma outra fonte iraniana apresenta o seguinte quadro de deserção:
"O Irã esperava que Assad pedisse assistência militar, e estávamos preparados para responder", disse a fonte iraniana. "Mas tal pedido não veio. Ficou claro depois que Aleppo caiu que Assad não tinha intenções reais de permanecer no poder.` A queda de Aleppo marcou um ponto de virada. Autoridades iranianas alegam que a relutância de Assad em agir sinalizou sua disposição de renunciar, uma decisão influenciada por esforços diplomáticos liderados pela Rússia e pelos Emirados Arabes Unidos. Esse desenvolvimento deixou o Irã com opções limitadas, levando a um pivô estratégico. (SLG: Autoridades iranianas revelam que Assad ignorou os avisos)Ao que tudo indica, o esgotamento do país, seu estado, suas forças armadas e seu tecido social já eram muito profundos para resistir a uma nova intervenção militar como a que estamos vendo agora e Assad renunciou a defesa do país, liberando o caminho para uma fácil conquista de Alepo, Homes e Damasco para a dissolução do Estado. (SLGuardian: iranian officials reveal Assad ignored warnings)
Diante desse quadro de falência múltipla dos órgãos do Estado e das defesas sírias, Putin deve ter pensado o mesmo que disse em 2015:
"De agora em diante, não seremos mais sírios do que os próprios sírios". (EurAsia Daily: Russians don't have to be Syrians any more than the Syrians themselves — thoughts about the failure in Aleppo)
Demonstrando que se os sírios não estavam em condições de defender-se, nem reivindicavam ajuda externa, oferecida até a véspera da queda pelos russos e pelo Irã, ele não queria se passar como um “missionário armado”.
Bases russas na Síria
Discutindo sobre a ocupação da Polônia oriental pelo Exército Vermelho a mando de Stalin, Trotsky faz a seguinte observação:
Uma vez, Robespierre disse que o povo não gosta de missionários com baionetas. Com isso, queria dizer que é impossível impor ideias e instituições revolucionárias sobre outros povos, mediante a violência militar. Logicamente, esta ideia, correta, não significa que seja inadmissível a intervenção militar em outro países, com o objetivo de cooperar com uma revolução.
Mas tal intervenção - como parte de uma política internacional revolucionária - deve ser entendida pelo proletariado internacional, deve corresponder aos desejos das massas revolucionárias em cujo território as tropas revolucionárias vão entrar. A teoria do socialismo num só pais não pode, naturalmente, criar esta solidariedade internacional ativa, que é a única capaz de preparar e justificar a intervenção armada. O Kremlin coloca e resolve o problema da intervenção militar, como todas as demais questões de sua politica, ou seja, de forma absolutamente independente das ideias e sentimentos da classe operária internacional. Por isso, os recentes “êxitos” diplomáticos do Kremlin comprometem de forma monstruosa a URSS e introduzem uma grande confusão nas fileiras do proletariado mundial.” (L. Trotsky, Em defesa do Marxismo, p. 43)
Uma intervenção militar em outros países por um estado operário com o objetivo de cooperar com uma revolução deve corresponder aos desejos das massas revolucionárias em cujo território as tropas revolucionárias devem entrar. Ainda mais confusão pode ser criada pela intervenção de um estado capitalista bem armado, como parte de um conflito com o imperialismo, no território de outro país capitalista oprimido no processo de uma contrarrevolução pró-imperialista baseada na erosão profunda da dinastia capitalista dominante, incapaz de se defender mesmo militarmente.
É uma coisa boa que Putin não tenha ilusões em si mesmo por ser um missionário armado. Caso contrário, favoreceria muito mais a propaganda de guerra imperialista contra a Rússia e o Eixo da Resistência. Putin pode oferecer resistência ao avanço do imperialismo em suas fronteiras, como tem feito na Ucrânia. Pode, muito progressivamente, ajudar na luta contra a intervenção imperialista como fez na Síria ou nas novas lutas de libertação nacional contra o capital financeiro imperialista, como fez na África Central, mas, pelas determinações burguesas de seu próprio governo, não vai além disso.
A China parece realizar uma luta economicista com o imperialismo ao mesmo tempo em que arma-se para um eventual ataque, de forma defensiva, contra si ou por um assalto final do imperialismo sobre Taiwan. Limita-se a desenvolver as suas capacidades produtivas o mais rapidamente possível para não só satisfazer as necessidades do seu povo, mas também para que possa competir de forma militar mas defensivamente com o Ocidente. A China quer ganhar tampo. Está interessada em evitar um confronto aberto com o Ocidente durante o maior tempo possível (talvez eles estejam sob a ilusão de que possam evitar tal confronto indefinidamente). Enquanto constrói as suas forças armadas, quer evitar o destino da União Soviética, que estavam parcialmente exaustos da incessante corrida ao armamento com o Ocidente.
Isto significa que conduz a sua política externa de uma forma muito conservadora, perseguindo o seu próprio interesse nacional e tentando não antagonizar os EUA. É evidente que não quer desenvolver uma política externa comunista internacionalista, mas através dos BRICS e do cinturão e da estrada, está a promover uma ilusão de coexistência “multipolar”.
Putin e Xi se encontram na recente cúpula do BRICS em Kazan, na Rússia
Podemos ver que este plano funcionou para ajudar a China a alcançar enormes ganhos nas últimas décadas, no entanto, à medida que os EUA e os seus aliados se tornam cada vez mais desesperados face ao crescente poder económico e militar da China, as contradições estão a vir à tona. Os EUA não vão parar por nada para impedir o surgimento deste mundo multipolar que a China está a tentar construir. Podemos ver a existência da brutalidade que estão a usar para "reformular" a Ásia Ocidental para manter o seu domínio às custas da China, onde está a esmagar estados e a cometer genocídio. Que resposta tem a China para isto? Obviamente, eles ficaram longe para a Síria e a Líbia para evitar antagonizar o Ocidente, mas durante quanto tempo eles podem continuar a política de evitar conflitos à medida que os EUA utilizam todas as suas ferramentas para manter o seu controlo das regiões e recursos fundamentais.
O Irã é responsável por articular um poderoso sistema internacional defensivo de resistência, mas não de ofensiva para derrotar definitivamente o imperialismo na região e seu títere sionista.
Unir os oprimidos e superar os limites do Eixo de Resistência
Mas a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Este é o limite da Frente Unida Anti-Imperialista e o mais formidável dos Eixos da Resistência Anti-Imperialista e Anti-sionista. Os eventos na Síria são um aviso de que os marxistas não podem confiar que a ascensão do mundo "multipolar" ocorra organicamente. Os imperialistas não vão parar por nada em sua abordagem de "bater ou quebrar" (crash or crash through) e suas "velhas" armas de violência militar e sanções ainda têm o potencial de gerar lucros, mesmo que sejam contraditórias e fugazes. A potência econômica da China e dos BRICS, a iniciativa Cinturão e Rota e o poder militar contínuo da Rússia são impulsos significativos que podem ser instrumentalizados em favor da classe trabalhadora internacional contra o imperialismo, mas o dragão desesperado do imperialismo está longe de estar morto.
Nenhum governo capitalista do mundo, pode suprir a necessidade da construção de uma Nova Internacional Comunista com seções em cada país do globo, para orquestrar de dentro para fora e de fora para dentro a revolução socialista permanente, para além das limitações estabelecidas por cada burguesia oprimida e covarde, para converter a luta anti-imperialista defensiva em uma luta socialista ofensiva que liberte os povos oprimidos e a população trabalhadora do planeta de tragédias como a que está a ocorrer na Síria e que se repetirá em formas menos ou mais trágicas em meio ao ingresso da situação geopolítica na Terceira Guerra Mundial.