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Elementos ideológicos da crise cambial de 2024

Elementos ideológicos da crise cambial de 2024

Em dezembro de 2024, ocorreu um forte agravamento da crise cambial do Real. Quais as raízes dessa crise?

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Antônio Sebastião de Oliveira

Em dezembro de 2024, ocorreu um forte agravamento da crise cambial do Real.

Vamos aos números[1]:

1 - Fechamento da cotação do dólar em 30/11/2024: R$ 5,973;

2 - Fechamento da cotação do dólar em 30/12/2024: R$ 6,1778;

Variação do dólar em dezembro de 2024: 3,43%

Sendo mais preciso, cabe dizer que o agravamento da crise cambial teve origem em 27/11/2024, tendo em vista que o fechamento da cotação do dólar em 26/11/2024 = R$ 5,8095, nessa perspectiva, se observa que a variação cambial a partir do fechamento de 26/11/2024, até o fechamento de 30/12/2024, foi de R$ 6,34%.

Nesse texto, pretendo apresentar uma contribuição ao debate sobre as disputas de narrativas sobre as causas desse agravamento da crise cambial.

Em primeiro plano, é preciso destacar que o grande capital propaga incessantemente a narrativa segundo a qual: a principal causa dessa crise cambial é a recusa do governo Lula em apresentar um pacote de corte de gastos mais agressivo contra os beneficiários da previdência social. Trata-se de uma narrativa que tem sua dose de verdade, pois, de fato, o déficit público é um elemento indutor de crises cambiais, mas também é fortemente influenciada por ideologia, tendo em vista que o comportamento dos investidores é influenciado por elementos concretos e também por doutrinação ideológica.

Em princípio, cabe reconhecer que um cenário de déficit público eleva o risco de uma crise cambial, cabendo, por outro lado, ponderar que o problema fiscal, por si só, não é suficiente para deflagrar uma crise cambial que também exige elementos ideológicos.

Sendo mais claro, cabe reconhecer que a situação fiscal é um elemento capaz de deflagrar uma crise de confiança entre os credores e, portanto, é razoável esperar que os credores tendem a exigir maiores taxas de juros quando têm uma maior percepção do risco.

Para simplificar, irei, inicialmente, concentrar a análise na relação Dívida Pública (líquida)/PIB, pois é óbvio que quanto maior essa proporção, maior o risco de não pagamento.

O gráfico abaixo[2], é baseado em dados concretos da relação Dívida Pública (líquida)/PIB de diversos países.

 

 

Dentre os países acima listados, merece destaque o “Japão”, que, apesar de ser o país com a pior relação dívida/PIB e ter uma perspectiva de estagnação ou redução do PIB nos próximos anos[3], consegue vender seus títulos públicos a juros extremamente baixos, o que evidencia que os agentes econômicos tomam suas decisões influenciados não somente por dados concretos, mas, também, por doutrinação ideológica.

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64333089 Como o país mais endividado do mundo ainda tem crédito internacional

A seguir, é apresentado um gráfico[4] com as relações entre os custos das dívidas e os PIB’s de diversos países.

 

 

O mais lógico seria que os credores exigissem maiores taxas de juros de países com maior relação Dívida/PIB, tendo em vista, que, em princípio, quanto maior tal proporção, maior o risco de inadimplência. Mas não é isso o que ocorre, como fica evidenciado no exemplo do Japão. Essa circunstância evidencia o caráter ideológico que existe na determinação de taxas de juros exigidas pelos credores internacionais dos diferentes países.

Neoliberalismo e controle da inflação por meio de altas taxas de juros.

Um dos aspectos fundamentais dos planos de ajuste neoliberais foi a utilização de altas taxas de juros para o controle do processo inflacionário[5] que atingia, inclusive, os países imperialistas, no final da década de 1970. De fato, tanto Ronald Reagan quanto Margaret Thatcher se utilizaram de altas taxas de juros para controlar a inflação na implementação de seus programas de ajuste neoliberais.

O resultado disso foi que, durante a Era Reagan (20/01/1981 – 20/01/1989), houve um forte aumento da dívida pública norte-americana, que subiu de 26% do PIB, no final de 1980, para 41% do PIB no final de 1988.[6]

Além disso, o aumento dos juros, durante a era Reagan, também gerou as crises das dívidas públicas da década de 1980, que resultaram em severas crises econômicas em diversos países latino americanos.

Anos mais tarde, esse modelo de controle da inflação por meio de altas taxas juros seria utilizado em diversos países latino-americanos, dentre eles o Brasil, onde foi implementado o Plano Real.

O Plano Real é, essencialmente, um plano de controle de inflação por meio de altas taxas de juros. Esse controle de inflação criou um ambiente propício[7] para a implementação de diversas políticas neoliberais nos últimos 30 anos, tais como privatizações e reformas da previdência.

O gráfico a seguir[8], contém alguns elementos sobre o absurdo o crescimento da relação dívida pública/PIB no Brasil nos últimos 30 anos.

 

 

Alguns dados desse gráfico merecem destaque:

1 – No início do Plano Real, a relação Dívida Pública / PIB era ligeiramente inferior a 25% do PIB;

2 – Entre o final de 1997 e janeiro de 2003 (posse de Lula em seu 1º mandato), essa proporção subiu para cerca de 58% do PIB, o que evidencia o desastre da gestão tucana que conseguiu aumentar o endividamento do país, em um período no qual ocorreram significativas vendas de patrimônio público (privatizações);

3 – No início de 2014, as sucessivas gestões petistas tinham conseguido reduzir essa relação para cerca de 30% do PIB. Entretanto, já durante o ano de 2014, quando teve início a crise das commodities que afetaria gravemente as economias dos países em desenvolvimento, essa relação começou a piorar. Todo esse quadro de piora foi agravado por uma vigorosa operação de desestabilização política que resultaria na deposição de Dilma, em meados de 2016;

4 – Durante o governo Temer, essa situação continuaria a se agravar rapidamente, por meio da imposição de altas taxas de juros e por meio de um ajuste fiscal baseado exclusivamente em contenções de gastos (Regime de Teto de Gastos), não aplicando medidas tributárias contra os mais ricos,[9] ou seja, o Brasil continuou a ser o único país do G-20 a não tributar lucros e dividendos,[10] um dos países com a política tributária mais injusta do mundo.

O governo Bolsonaro foi marcado por um fenômeno atípico: a Pandemia de Covid, que gerou uma forte retração de crédito, que, por sua vez, resultou em uma redução do coeficiente de multiplicação da moeda,[11] criando um cenário no qual a elevação de gastos públicos e a redução dos juros, fenômenos que ocorreram em um cenário global, não geraram inflação imediata.

Entretanto, a partir de meados de 2021, com o arrefecimento da retração de crédito gerado pela pandemia,[12] teve início uma nova escalada da Taxa Selic, desse modo, em pouco tempo, o Brasil voltaria a ter as maiores taxas de juros reais do mundo,[13] restaurando um cenário de populismo cambial.[14] Um cenário no qual as altas taxas de juros são utilizadas para produzir uma valorização artificial do real perante o dólar, gerando uma falsa sensação de riqueza. Infelizmente o populismo cambial costuma ter vida curta, pois costuma gerar uma acentuada quebra cambial pouco tempo depois.

Em meados de 2022, o governo Bolsonaro introduziu uma série de medidas que desorganizaram as finanças públicas com o intuito de obter uma vitória eleitoral. Essas medidas agravaram o problema do déficit público no início do governo Lula, que impôs ao governo sucessor o ônus da aplicação de medidas de austeridade sob a ameaça da deflagração de uma crise cambial.

No início de 2023, logo após sua posse, Lula reclamou da elevada taxa de juros reais mantida pelo Presidente do Copom indicado por Bolsonaro. É preciso dizer que o governo Lula errou ao não rever as metas de inflação.[15]Naquele contexto, os países com maior grau de desenvolvimento adotaram a política de controle de inflação baseada em metas de inflação de longo prazo, tendo em vista que era bastante insensato querer controlar a alta da inflação pós pandemia, um fenômeno bastante atípico, no curto prazo.

Os resultados dessa política criminosa, foram:

1 – Contenção do crescimento econômico, que poderia ter sido bem maior em 2023, cabendo salientar que essa contenção do crescimento econômico também reduziu as receitas tributárias, sendo que o rápido crescimento de tais receitas era de grande importância para ajudar a reverter a desorganização das finanças públicas gerada pelas medidas voltadas a promover a reeleição de Bolsonaro em meados de 2022;

3 – Contenção artificial da inflação em 2023,[16] digo que teve caráter artificial pois ocorreu às custas de uma valorização artificial do real, um dos componentes da crise cambial de 2024;

4 – O ponto mais alto dessa valorização artificial do real ocorreu no dia 23/07/2023, quando a cotação do dólar atingiu o valor de R$ 4,7336,[17] [18] gerando uma falsa sensação de riqueza que somente é viável por meio da manutenção da maior taxa de juros reais do mundo, algo que obviamente não é viável no longo prazo.

Pessoalmente sou favorável à tese de que a obtenção de metas de inflação baixas no Brasil em um cenário de piora da relação dívida PIB (algo que ocorreu no últimos 10 anos e ocorre de modo acelerado agora) somente é viável por meio de taxas de juros extremamente altas,[19] algo que é inviável no longo prazo.

Como obter o equilíbrio fiscal?

Em termos simples: existem dois caminhos para a obtenção do equilíbrio fiscal:

O defendido pelo grande capital, que ocorre somente por meio do corte de despesas: ou seja, menos verbas para a saúde, educação e para a promoção de outros direitos sociais e, principalmente, pela redução de direitos previdenciários, como se não tivessem sido suficiente a mais recente Reforma da Previdência.[20]

O que deve ser defendido pelos trabalhadores: tributar lucros e dividendos[21] para manter a correção dos benefícios previdenciários pela inflação.

Nesse contexto, é preciso romper com o pensamento “bismarckiano” que diz que os benefícios previdenciários devem ser mantidos unicamente por meio de tributos cobrados sobre as folhas de salário, pois esse pensamento leva ao conflito[22] entre trabalhadores ativos e aposentados.

Ainda que a aprovação da tributação de lucros e dividendos seja improvável, considerando-se a atual composição do parlamento, essa medida deve ser defendida pelos partidos de esquerda, como modo de aumentar o grau de consciência política da população.

Agravamento da Crise Política

Embora Lula tenha sido eleito como Presidente da República, seu poder é muito limitado, pois a maioria parlamentar na Câmara dos Deputados é controlada por uma pessoa que trabalha pelo fracasso de seu governo.

Na verdade, o grande capital está com a faca e o queijo na mão: pois, no atual contexto, Lula tem as seguintes opções:

  1. se subordinar aos interesses do grande capital para tomar medidas de traição aos interesses dos oprimidos, o que traria um dano político de longo prazo, pois desse modo seus apoiadores perderiam a legitimidade política para criticar medidas impopulares no futuro;
  2. resistir às pressões do grande capital e arcar com o ônus de política de liderar o governo em meio a uma crise econômica que tende a se agravar;
  3. renunciar e chamar a luta por uma Reforma Política para que deixe de existir a atual situação absurda na qual o chefe de governo não tem maioria parlamentar.[23]
 

 

 
 

[1] Nesse contexto, continuou o aprofundamento do arrocho fiscal contra os mais pobres, por meio da não correção das faixas de isenção do Imposto de Renda. Essa não correção gerou uma situação na qual até mesmo assalariados que ganhavam menos do que dois salários-mínimos, passaram a ser contribuintes do Imposto de Renda.

[2] A política de não tributação de lucros e dividendos existe desde 1996, ou seja, desde a época do início do Plano Real.

[3] É comum a falsa explicação que afirma que a emissão de moeda é principal causa da inflação, trata-se de uma explicação simplista que despreza alterações no coeficiente de multiplicação da moeda e outros fenômenos que também contribuem para a determinação da taxa de inflação.

[4] E consequentemente, uma recomposição do coeficiente de multiplicação da moeda, que gerou uma retomada da inflação em nível mundial.

[5] Pelo menos, a partir de meados de 2022. Essa forte elevação da taxa de juros tinha dentre seus objetivos tentar conter ao máximo a alta de inflação durante o período eleitoral, em uma tentativa de reeleger Jair Bolsonaro.

[6] Outro efeito do populismo cambial é a desindustrialização, ou seja, em troca de uma sensação de riqueza de curto prazo, se produz um empobrecimento no longo pra.

[7] Cabendo considerar que, eventual revisão das metas direito inflação, também teria um custo político.


[8] Em termos históricos, os setores mais conservadores, dentro da ordem capitalista, costumam defender políticas monetárias contracionistas, que, aliás, tendem a aumentar a concentração de renda, enquanto e os setores mais progressistas, costumam defender políticas econômicas menos contracionistas. Essa tese pode ser evidenciada por meio de diversos exemplos históricos, mas isso não é viável no corpo do presente artigo.

[9] Fonte: https://www.econlib.org/library/Enc1/Reaganomics.html

[10] Isso me faz lembrar que os seres que sugam o sangue de outros costumam dispor de mecanismos de inibição da dor capazes de fazer com que suas vítimas não reajam enquanto seu sangue é sugado.

[11] Fonte: https://blogdoibre.fgv.br/posts/relembrando-evolucao-recente-da-divida-liquida


[12] Pois se trata de um país onde ocorre um rápido envelhecimento da população o, que, por óbvio, reduz a capacidade laborativa média e tende a elevar as despesas com saúde.

[13] Fonte: CNN. https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/brasil-e-o-pais-que-mais-paga-juros-de-divida-no-mundo-aponta-estudo/


[14] Fonte: “Valor Econômico”.


[15] Fonte: https://br.investing.com/currencies/usd-brl-chart

[16] Essa contenção artificial da inflação em 2023 pretendia também preservar o capital político de Bolsonaro, tendo em vista que a responsabilidade por uma inflação alta 2023 poderia ser facilmente atribuída a Bolsonaro.

[17] A valorização do dólar entre 23/07/2023 (R$ 4,7336) e 30/12/2024 (R$ 6,1778) foi de 30,5095%, algo que tende a gerar uma forte inflação em 2025, quando a atribuição da responsabilidade política pelo processo inflacionário ao governo anterior se mostra inviável.

[18] Também cabe salientar que a desvalorização do real em 2024 teve outras causas, tais como: 1.   A redução do preço internacional do minério de ferro, um de nossos principais produtos de exportação, fato que irá reduzir os investimentos e lucros das empresas que atuam nesse setor. Esse fator poderia ter sido compensado se a exploração de petróleo na Margem Equatorial tivesse sido autorizado pelo Governo Lula, lembrando que o ingresso de investimentos no Brasil por essa exploração mineral poderia ser fortalecido se a política de conteúdo nacional não tivesse sido descontinuada; 2.   Problemas climáticos (secas e enchentes) que afetaram gravemente nossa produção agrícola em 2024; 3.   Bolha da inteligência artificial: o mundo todo foi afetado pela atração de investimentos por grandes empresas de tecnologia que investiram pesadamente em inteligência artificial durante o ano de 2024; 4.   O crescimento do grau de internacionalização da economia, agravado pela política do Banco Central de permitir a abertura de contas de residentes no Brasil em dólares; e 5.   Aumento de compras de criptomoedas por brasileiros.

[19] Trata-se de um cenário que é conhecido como dominância fiscal. Deve-se dizer que esse cenário existe, pelo menos desde 2015, ano a partir do qual teve início uma forte escalada da relação dívida/PIB. Antes, nesse artigo, fiz uma crítica ao caráter ideológico das decisões dos investidores, mas, sendo realista: não se deve contar com um cenário no qual um governo de esquerda conta com o “bom humor” dos credores que querem subordinar os governos aos interesses do grande capital. A tarefa política de libertação nacional frente aos interesses dos credores tem seu ônus, mas é uma tarefa necessária. Costumo comparar o desafio de se livrar da dependência dos credores, com o desafio de se livrar de uma dependência química.

[20] É preciso que se diga que o objetivo do grande capital é promove outra Reforma da Previdência que rompa com as garantias constitucionais de reajuste dos benefícios previdenciários pela inflação, como aliás, Guedes já havia antecipado em 2022. Essa crise cambial tem, dentre seus objetivos criar condições políticas para essa reforma.

[21] Lucros que tendem a ser mais elevados por meio de adoção de novas tecnologias como a inteligência artificial.

[22] Não é raro ouvir influenciers de extrema direita colocando trabalhadores contra o pagamento das contribuições previdenciárias com base no argumento de que os trabalhadores atuais nunca vão se aposentar. Aliás, foram esses influenciers de extrema direita que insuflaram os trabalhadores de aplicativos a se oporem a contribuir com a previdência social. Outro aspecto que erodiu as bases de arrecadação da previdência social foi a pejotização, ou seja, a transformação de pessoas físicas, que antes eram contratadas como assalariados, em pessoas jurídicas (MEI’s), algo que assume dimensões cada vez mais fortes.

[23] Tendo claro que no atual contexto é inviável um governo de esquerda sem ampla maioria parlamentar, como ocorre no México e na Bolívia, defendo a instauração de um parlamentarismo unicameral com eleições anuais, sendo que em cada votação seria renovado ¼ do parlamento.

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