França: experiência e visão de mundo do proletário dos subúrbios de Paris
O seguinte relato tem como objetivo descrever o cotidiano experienciado pelo companheiro César L. Rocha, o qual teve a oportunidade de trabalhar no chão de fábrica de uma gráfica na região periférica de Paris. Para que seja mantida a devida preservação dos envolvidos, o nome da empresa será substituído por gráfica X.
Contexto
A experiência que relato a seguir ocorreu em uma fábrica localizada na região periférica de Paris, mais precisamente em uma pequena cidade chamada Vitry-sur-Seine, na qual é possível notar uma forte presença de estrangeiros. Trata-se de uma gráfica onde, naturalmente, são realizadas atividades como impressão de diversos tipos, corte, dobra etc. Ademais, o local faz parte de um relevante grupo do ramo da impressão que existe há mais de 50 anos e que tem um amplo alcance em diversas partes do território europeu.
Havia três possíveis expedientes no local, das 06h30 às 13h30, das 13h30 às 20h30 ou o turno noturno. Meu contato se resumiu aos dois primeiros devido à distância de minha instalação.
É importante mencionar também que o contato com a gráfica X ocorreu exclusivamente no contexto de um operário contratado. Esse fato me deu a oportunidade, não apenas de me compreender o cotidiano da classe trabalhadora francesa, mas também de dialogar como um igual com proletários das mais diversas origens e visões de mundo.
Serviço prestado e condições de trabalho
Primeiramente, devo esclarecer que minha atuação se limitou ao setor de corte de dobra do material impresso que nos era trazido. O setor de impressão, por outro lado, jamais me foi apresentado. Nesse sentido, posso dizer que o local onde trabalhei era razoavelmente salubre, apesar de bastante quente e com uma intensa poluição sonora.
Diante disso, o trabalho que prestei era cansativo e, em alguns casos, exigente em termos físicos. Isso ficou evidente, por exemplo, pelo fato de operários em torno dos 40 anos se limitarem à pilotagem de empilhadeiras, por já não serem mais capazes de realizar uma boa parcela das funções ali presentes.
De forma sintética, havia em torno de quatro postos de fato distintos a serem ocupados por cada máquina. Em geral, havia a função de preencher a fileira de material impresso – que o direcionava para ser dobrado e eventualmente grampeado pela máquina –, a função de plastificar o material já modificado utilizando uma máquina à calor e a função de empilhar o produto sobre paletas – se necessário colocando-o em caixas –, de forma que pudessem ser encaminhados para o depósito.
Nesse contexto, registrei que diariamente eu chegava a completar um total de cinco paletas. Cada paleta continha cinco andares e 12 caixas por andar, o que totaliza 300 empilhadas por dia. A quantidade de exemplares por caixa variava segundo o produto.
Ademais, havia ainda um último posto, que está relacionado a taqueadeira, uma máquina distinta cuja função era alinhar um amontoado de folhas em tamanho aproximadamente A2 que seriam posteriormente cortadas. No caso, cabia ao operário encarregado depositar os papeis em grandes porções sobre o aparelho em questão e em com certa velocidade. Esse era conhecido como o trabalho mais exaustivo da fábrica.
É difícil ter uma noção clara de qual era o ganho preciso da empresa a partir do meu trabalho, visto que eu era constantemente mudado de posto segundo a necessidade. Além do que, a mercadoria que produzíamos era heterogênea em tamanho, tipo de papel, finalidade e quantidade por caixa.
Nessa planta, o salário médio dos operários do chão de fábrica era de 1.500 euros (pouco mais de 9 mil reais). O que é pouco para o custo de vida na França, mesmo em bairros proletários de Paris. O aluguel para uma famíla dificilmente chega a menos de 800 euros.
Classe trabalhadora “francesa”
Logo de cara, devo ressaltar que a maior parte dos operários eram estrangeiros. As maiores comunidades eram de países africanos como Argélia, Marrocos, Saara Ocidental, Mali, Senegal e Congo Brazaville, também de países asiáticos como Índia, China, Camboja e Vietnam. No entanto, conheci poucos europeus ocupando tal posto, apenas alguns poucos franceses e um companheiro de Portugal e nenhum Latino-Americano.
Tal fato ganhou para mim uma dimensão inclusive irônica. Isso se deve ao fato de meu primeiro contato com o chão de fábrica ter ocorrido durante o período eleitoral. Logo, a primeira cena que marcou minha experiência foi uma série de imigrantes produzindo o material de campanha dos candidatos apoiados pela Marine Le Pen, a qual se opõe fortemente à imigração.
Apesar disso, a proporção de estrangeiros europeus era visivelmente maior a medida em que se observava os postos mais elevados da empresa. Não apenas franceses, mas também belgas, portugueses etc. Até aí, francamente, tal descrição já me parecia previsível.
Percebi também uma grande quantidade de pessoas não tão jovens, a maioria das quais, por sinal, já trabalhava na gráfica X há mais de uma década. Também percebi uma considerável presença feminina – especialmente de origem asiática –, inclusive em tarefas que eram exigentes fisicamente.
Contato com os operários
Chegamos ao ponto que, na minha visão, é o mais fundamental da minha experiência. Me refiro ao contato que tive com os trabalhadores da fábrica. Em um primeiro momento, a interação entre eles me gerou espanto. A maioria fazia questão de começar o turno cumprimentando quantos colegas pudesse, apesar da enorme extensão da fábrica. Além disso, era muito interessante como eles eram extremamente informais entre si e amigáveis, apesar de origens distintas. Mesmo que intuitivamente eu pensasse que a tendência era que eles se fechassem em ciclos de amizades com operários do mesmo país, de fato, isso não se confirmou. Inclusive escutei por diversas vezes trocas de piadas de cunho racial entre, por exemplo, chineses, árabes e africanos, mas sempre num tom descontraído e que não aparentava em absoluto gerar desconforto mútuo. Isso demonstra que o clima era predominantemente amigável entre os funcionários.
Da mesma forma, fui tratado sempre com muita atenção e amizade. Eles me ensinavam com bastante paciência a realizar tarefas que não conhecia ainda, dividiram seu lanche/almoço comigo sem nem sequer eu precisar pedir, conversavam sobre suas experiências e perguntavam sobre as minhas. Tais piadas de cunho racial que mencionei se aplicavam a mim também, mas em nenhum momento senti que havia agressividade ou provocação da parte deles, muito pelo contrário. O fato de eu ser o único Latino gerava, até certo ponto, uma certa curiosidade da parte deles.
Fora isso, devo dizer que a consciência de classe parecia ser viva entre eles. Vi em diversos pontos da fábrica adesivos de organizações como a França Insubmissa (partido da esquerda nacional) e a CGT (maior central sindical francesa).
Gostaria ainda de registrar um outro evento que me fez refletir sobre como os operários viam a política identitária. No caso, estava no vestiário enquanto dois operários africanos – um do Mali e um do Congo – conversava sobre a então recém ocorrida abertura das Olímpiadas de Paris. Eles entenderam que a imagem de um cavaleiro montado em um cavalo branco era uma representação do apocalipse e viram a paródia da Santa Ceia com extrema repulsa. Essa mesma opinião foi reforçada por um companheiro da Argélia semanas depois, o qual nem sequer estava participando da conversa naquele momento. Diante disso, me perguntei qual a posição da esquerda nesse processo, como estamos lidando com a guerra cultural, quais pautas são convidativas à classe trabalhadora real e quais apenas servem para tirar o foco dos trabalhadores e intensificar preconceitos.
Experiência com cada nacionalidade
Meus primeiros colegas de posto eram africanos do Sahel e da África Central. Quando falava com os malianos, em particular, sempre me dava ao trabalho de mencionar o nome de Assimi Goïta (líder da revolução maliana). A resposta era sempre energicamente favorável ao líder do país e de repúdio à ocupação francesa no continente africano. Para um operário com quem senti que tinha maior abertura, fui mais além e perguntei qual sua opinião sobre Macron e Putin. Ele não hesitou em descrever o mandatário francês com palavras não muito educadas para serem reproduzidas, questionando sua sexualidade e moral, enquanto tecia diversos elogios sobre o líder russo, em especial, na sua luta contra o terrorismo e os movimentos separatistas no Sahel.
Já com os Senegaleses também me dava, sempre que possível, a liberdade de perguntar sobre qual a visão deles sobre Macky Sall (ex-presidente simpático à França) e sobre o grupo político – a priori mais nacionalista – que chegou ao poder, encabeçado por Ousmani Sonko. Como esperado, era unânime a repulsa a Macky Sall e à CEDEAO (aliança de países da África Ocidental com governos alinhados com Paris), sendo ambos vistos como resquícios coloniais que deveriam ser extirpados em prol da soberania nacional. Um operário bastante enérgico chegava a quase gritar de raiva ao escutar o nome do antigo mandatário na pergunta. Sonko e o atual presidente, por outro lado, eram vistos com simpatia, apesar de gerarem uma certa decepção por terem se negado à sair da CEDEAO e uma descrença da capacidade de promover mudanças significativas no país.
Sem dúvidas uma das interações mais interessantes que tive foi com um companheiro que estava operou a taqueadora comigo. Ele era do Saara Ocidental (região controlada ilegalmente pelo governo marroquino), naturalmente com tendências soberanistas e antipática ao Reino do Marrocos. Na sua visão, seu país havia sido dominado por puro interesse nos recursos minerais e no potencial de pesca de seu litoral. Perguntei o que ele pensava sobre a causa palestina, no que ela me rebateu “eu vou em todos os protestos, mas não é só pela Palestina que temos que protestar. Precisamos protestar por todos os países em guerra. Sudão, Síria, Iêmen... Seres humanos são seres humanos em qualquer lugar”.
Todavia, na taqueadora logo ao lado, estava operando um companheiro de fato marroquino. De início, não imaginava que havia um sentimento tão forte por parte do povo do Marrocos de que o Saara se configura como parte do seu território. Esse choque de nacionalismos gerava recorrentes trocas de farpas como “não escute o que ele te fala! Ele é um polisário” (referência ao grupo separatista do Saara, Frente Polisário), enquanto era rebatido com “vai baixar a mão do teu rei”. Essa situação chegava por vezes a ser bastante cômica.
Também na taqueadora, tive a oportunidade de interagir com um companheiro argelino, o qual mencionei anteriormente. Apesar de bastante calmo, ele era um defensor enfático defensor da causa da Palestina, inclusive chagava sempre no trabalho vestindo um keffiyeh (lenço palestino). Inclusive, houve um momento em que o questionei sobre o judoca argelino que se recusou a lutar com o adversário “israelense”, no que ele me respondeu ironicamente “a gente não pode lutar contra um país que não existe. O que é esse tal de ‘israel’? Onde que isso se encontra?”. Também me disse que a Argélia era amiga de China e Rússia, já que esses países serviam como um contraponto às potências neocoloniais, e que a nação argelina era totalmente contrária a qualquer forma de colonização. Ainda nesse contexto, ele me disse que era simpático à causa do Saara Ocidental, pois via nas atitudes do Marrocos no território grande semelhança com as do regime sionista em terras palestinas. Perguntei ainda se ele tinha alguma opinião sobre a revolução no Mali e no Niger, visto que a Argélia tem atritado com Bamako devido ao apoio que dá aos separatistas do norte do território maliano. Entretanto, ele não tinha uma visão sobre o assunto. Em outra ocasião, havia feito praticamente as mesmas perguntas a uma outra companheira argelina, que me deu respostas muito parecidas sobre os temas. É válido mencionar também que ambos tinham uma opinião positiva – porém não muito entusiasmada – com relação ao atual presidente do país, Abdelmadjid Tebboune.
Com os asiáticos, por outro lado, não senti que houve muito contexto para perguntar sobre assuntos políticos, além da própria limitação na comunicação, dado que muitos não dominavam o francês. A única oportunidade em que senti essa oportunidade foi com um companheiro do sul da Índia. Eu o questionei a respeito do governo do primeiro-ministro Narendra Modi. Sua opinião visivelmente era bastante negativa. Ele me disse que o via como um líder que governa apenas para os hindus, em detrimento dos outros grupos religiosos e linguísticos do país. Infelizmente, não tive tempo de me aprofundar no assunto.
Com os poucos operários franceses que ali havia, também tive uma interação bastante agradável. Notei que a maior parte deles aparentavam já ter uma idade relativamente avançada – reparei o mesmo com relação aos asiáticos –, um deles inclusive me disse que já estava aposentado. Eles tinham uma excelente relação com os trabalhadores estrangeiros. Estavam sempre se tratando como iguais, inclusive fazendo e escutando as mesmas piadas que mencionei anteriormente. Um deles em particular me chamou a atenção, visto que ele era um profundo conhecedor da cultura brasileira. O operário em questão conhecia mais artistas nacionais – incluindo cantores, compositores, atores e diretores de cinema – do que eu mesmo. Achei o fato ainda mais curioso quando ele me disse que seus pais tinham origem argelina, mas ele em si não tinha nenhuma conexão familiar com o Brasil.
Conclusão da experiência
Em suma, posso dizer que essa foi uma oportunidade de fato muito interessante para melhor compreender o perfil do proletariado da região parisiense, em que condições trabalham, qual sua visão de política e como seus integrantes interagem entre si. De fato, as ideias anti-imperialistas e revolucionárias estão bastante presentes, mesmo que elas não sejam abertamente ditas a todo momento. Além disso, percebi como o sentimento de cooperação, mesmo entre trabalhadores de origens muito diferentes é bastante significativo, e confirma aquilo que deveria ser um mantra para todo movimento de cunho popular: aquilo que dá liga à classe trabalhadora é muito mais forte do que aquilo que a divide.
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